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Madonna MDNA ou anotações sobre a voz que nos guia

Certamente a melhor definição sobre o legado de Madonna que já li, foi há muitos anos num jornal francês. A autora do texto abria com a declaração: “Foi Madonna, e não o catolicismo, que me fez pensar em usar um crucifixo”. É compreensível.

Dos primeiros anos aos derradeiros dias, precisamos de uma voz que nos guie, ainda que por caminhos incertos, ainda que pela encruzilhada sempre fatídica ou pelo aberto que nos expõe ao nada. Os primeiros e os últimos guias (os pais, professores, algum enfermeiro, algum acompanhante…) muitas vezes não temos como escolher. São imposições, consequências da biologia e do destino.

Capa da edição deluxe do novo álbum de Madonna, MDNA
Capa da edição deluxe do novo álbum de Madonna, MDNA

Todos os outros, no entanto, temos algum poder de decisão, ainda que seja mínimo: amigos, mestres, amantes (lembro aqui a entrega sem concessões presente nas páginas iniciais de A história de O, um dos maiores romances do século passado) e mesmo estrelas pop.

Penso em John Lennon que, para os fãs dos Beatles, era mais importante que Jesus Cristo; penso nos garotos em choque, mas fascinados, com os olhos cercados por rímel de David Bowie; e, claro, em Madonna, uma mulher que há 30 anos não se perde de vista, que se reinventa para ser o mesmo produto de sempre: a católica perturbada entre o prazer e a proibição; entre a confissão pública e o silêncio. Contradições que falam tão alto a nós todos que convivemos com crucifixos nas paredes de casa.

Madonna - MDNAMadonna ergueu seu status mitológico sobre as cinzas de uma tradição musical vitimizada: a disco music dos anos 1970, que já ressuscitou como house music, techno, electro, pop dançante, já recebeu alcunhas terríveis como “música de tusc-tusc” e a incompreensível “e-music”. Pensamos em disco music (ou seja: nas variantes que essa palavra carrega) como um objeto de distração, raramente como o prato principal. É trilha sonora da academia de ginástica, som alto de carros em alta velocidade riscando as ruas de metrópoles ou vilarejos e isca para encontrar um alguém ou O alguém numa pista de dança lotada, como se a noite não fosse um fim em si mesma.

Ainda que munida de rimas banais (step to the beat, celebration, hesitation…), a pista de dança de Madonna é política, contraditória, objeto de salvação, de comunhão e repulsa, tal e qual um dia foi para os pioneiros da disco music lá do começo dos anos 1970. A brancura macho man de John Travolta à parte, disco music é um produto das culturas gay, negra e latina. Os três guetos que a crítica de rock, branca e heterossexual, sempre desprezou, mas que Madonna soube usar como seu instrumento de legitimação, ainda que nadando contra uma tradição tão adversa (gênios como Nile Rodgers e Giorgio Moroder jamais arranharam o reconhecimento de um Eric Clapton ou de um Brian Wilson).

Ao pensarmos num álbum novo da cantora não pensamos apenas nos atropelos da sua vida particular e de como isso ganhará forma nas canções. Remetemos também ao alcance que ele terá sob luzes de neon e em pessoas que dançam sozinhas em busca de uma dose violenta de qualquer coisa. Madonna, ou ao menos sua persona pública, precisa ser uma eterna habitante da noite. Com MDNA não é diferente.

Madonna - MDNANas últimas semanas, a mídia foi invadida por inúmeras críticas sobre o seu novo trabalho. Muitas delas escritas com o olhar anabolizado de blogueiros que pareciam estar sentados numa área VIP olhando de cima a multidão desprovida, e não comentando uma coleção de músicas. Ou mesmo de críticas realçando os “alarmantes” limites da sua idade.

É incrível como subestimamos tanto a maturidade quanto a juventude, como se a consistência da carne de um artista fosse qualidade ou defeito da sua arte. Descreditamos Justin Bieber por sua adolescência de gel e Madonna por, aos 53 anos, cantar sobre o desejo de se perder numa pista de dança embriagada por Tangueray – como ela nos prescreve no single Girl gone wild, canção exageradamente pop, que poderia ser ignorada, se cantada por qualquer outro artista. Mas aqui o importante é (para voltarmos ao assunto) a voz que nos guia. A voz que ainda podemos escolher para nos guiar. Lembro uma passagem de O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez, em que os protagonistas, no crepúsculo da vida, repensam as razões que os deixaram afastados por tantas e tantas décadas: um dia foram jovens demais; ao final do romance, estariam velhos em excesso para o amor. Um f*** acaba sendo a resposta dos dois para as convenções em relação à idade. Ponto. E final feliz.

Ontem à noite, a maior parte das canções de MDNA se espalhou com velocidade implacável pelas redes sociais, causando surpresa e discórdia entre os fãs da cantora. Se a bobagem artificialmente prepotente de Give me all your luvin’ deixou uma ponta de receio em relação à qualidade do restante do material, o álbum (e se trata de um álbum, no conceito clássico do termo, com história, meio e fim) é tudo o que podemos esperar de um trabalho de Madonna: perfeição pop de um lado e os deslizes dos inseguros que não podem deixar que o mundo perceba o tamanho das suas dúvidas. MDNA, mais que seus antecessores (Confessions on a dancefloor e Hard candy), expõe as contradições entre desejo e exaustão, amor e ódio, que atravessaram seus discos clássicos dos anos 1980 e 1990.

É bom encontrarmos num mesmo trabalho sentimentos tão disparates como os presentes nas canções Gang bang e I’m fucked up. A primeira, uma batida industrial exorciza um ex-amante com o arrependimento de quem sempre acaba fazendo as escolhas erradas, esquecendo que ainda guarda a liberdade de fazê-las; a segunda é um mea culpa diante de uma relação fracassada. Madonna canta com desamparo os erros cometidos (“devia ter mantido minha boca grande fechada algumasvezes”, diz a letra), mas a confissão de fracasso parece ser mais um jogo de sedução do que a desistência derradeira. É como se o algodão doce do hit oitentista True blue voltasse à vida deixando um sabor amargo na ponta da língua.

Com uma batida à David Guetta, Turn up the radio vai além das promessas noturnas: não é uma canção sobre se sentir à vontade na pista de dança e, sim, à vontade na vida. I dont give a, com participação da rapper Nicki Minaj, segue o caminho oposto: é um tratado sobre o desconforto de precisar continuar dançando sobre o solo de uma relação fracassada, deixando claro que o tom de “não estou nem aí” do título é mera falácia. Mas o ritmo pulsante minimiza os longos espaços vazios, tal e qual Madonna já havia alertado no seu clássico Into the groove.

Love spent exala fofura ao metaforizar que o dinheiro e o amor são, ambos, elementos subjetivos por essência: cabe ao amante ou ao investidor escolher aforma correta (ou errada) de usá-los. Bobagens como B-day song e Superstar talvez ganhem algum significado com o passar das audições. São erros. Mas Madonna comete erros, enormes erros, talvez por isso permaneça tão atraente – nada mais insuportávele mais artificial que a perfeição, convenhamos…

MDNA talvez não seja seu disco do divórcio, como pregam alguns. Ou seu álbum de recomeço pós-Lady GaGa, como conspiram outros. Talvez seja seu álbum sobre reavaliar sua identidade, seu DNA, após algum tempo distante (distâncias e silêncios criam miragens, falsos cartões-postais), após certa descrença até do seu séquito mais fiel ou mesmo dela própria em relação ao seu potencial (a tal história da consistência da carne como matiz da arte). Mas tudo isso é apenas conjectura (necessária) de um crítico. A voz que nos guia está ali, ainda que por vezes robotizada em excesso, talvez em busca de alguma coisa que nem ela própria mais deseja ou compreenda. Mas não importa. Que seja bem-vinda de volta.

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Escrito por Schneider Carpeggiani