CRÍTICA ESTADÃO: A força da deusa confusa e contraditória

Madonna é o maior espetáculo do pop; e o que ele tem de mais superficial

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É o maior espetáculo do pop. E é também o espetáculo mais superficial do pop, com concepções flácidas do que seja religião, política, sexo, misticismo, folclore, arte, emancipação. Madonna é uma deusa confusa, contraditória, e essa que é sua fraqueza ela converte em força, o que emociona às vezes. Também é certo que Madonna é a artista que mantém a mais alta ambição do show biz em pleno funcionamento, um rolo compressor entre orgânico e eletrônico respirando e engolindo tudo em volta como um buraco negro espacial.

Durante duas horas, iniciando-se a partir das 21h47 e chegando perto da meia-noite, o primeiro show da diva em terras sul-americanas após 15 anos trouxe altas doses de diversão maciça para um público de cerca de 60 mil pessoas no estádio do River Plate, em Buenos Aires, na noite de quinta-feira. O trânsito ficou um inferno nas imediações do estádio, que estava completamente tomado. O público a recebeu em êxtase, sedento de todas as personas que a cantora criou ao longo de 24 anos de carreira. Havia muitas meninas de 10, 12 anos na platéia (órfãs de Britney, esnobadas por Avril, só parecem confiar agora na velha cortesã do pop), assim como bibas de todos os quadrantes, senhoras de botinha e chapéu de caubói, famílias, namorados, ricaços em busca de diversão, travecos e curiosos.

Madonna entra em cena dentro de um cubo metálico, que se abre enquanto ela canta a primeira canção, Hard Candy, e as paredes desse cubo vão se tornando telas gigantes portáteis que a acompanham em formas e locais diferentes durante todo o show, erguidas por cabos. Dentro da caixa, engrenagens que se mexem, como se acionadas, e bolas de sinuca e giletes e relógios vão se sucedendo na engenhoca até o grand finale, quando a cantora surge sentada em um trono, de cartola e maiô.

Depois, Madonna vai montada num Rolls Royce branco até o meio da platéia, que é alcançada por meio de uma passarela com esteiras rolantes. Ao longo de um set de 23 canções, Madonna revisita todas suas fases e é até mesmo crítica em relação à construção da sua personalidade, “destruindo” todas suas personas (representadas por suas bailarinas com roupas e perucas de material girls).

Madonna arranhou algum espanhol (“Están listos?”, dizia), apresentou uma de suas bailarinas como argentina e fez o diabo. Deve ter dançado sobre a passarela de 17 metros, indo e voltando, ao menos umas 50 vezes durante o show, o que a torna uma atleta invejável, uma maratonista. Embora não tenha visto a Alinne Moraes na novela das 8, Madonna está de franjinha e cabelo loiro comprido. A cantora simulou sexo com sua guitarra (fumando um cigarrinho depois), encenou sexo no chão, de quatro, com um dos seus bailarinos, e simulou de leve uma masturbação – mas tudo de forma fugaz e indiferente. A herança de Mapplethorpe, que ela empunhou em Sex, hoje virou apenas décor, cenário, pasmaceira.

Há muita simulação de outra ordem também no show. O DJ que finge fazer um scratch, os bailarinos de dreadlocks que fingem conhecer algo do teatro kabuki, Madonna tentando cantar rock and roll de verdade em Bordeliner (momento constrangedor, a voz dela não se presta a isso), Madonna querendo tocar uma guitarra Les Paul negra, mas sem os dedos nas cordas.

Madonna também faz seu comentário político, alternando em seu telão imagens de Lennon, Bob Geldof, Martin Luther King, Bono e Obama, enquanto tece críticas ao consumismo, à guerra e ao aquecimento global. Eficazes como um picolé de limão, seus comentários esquizofrênicos não se prestam a muita coisa além de aliviar a própria consciência. É a mesma coisa quando a religião é o tema. Há uma sucessão de frases atribuídas a Jesus, Shiva, Maomé e Alá (talvez até Paulo Coelho) desfilando à frente dos olhos, mas todas clichês de auto-ajuda, algumas desfiguradas de seu sentido. Madonna, messiânica de butique, vai encaçapando seu público, agora hipnotizado.

Em dado momento, ela pára toda a parafernália e diz que vai pedir a alguém da platéia que escolha uma música. Aponta para alguém. O sortudo é um garoto argentino de 25 anos, Tomás Corbalán, que escolhe Like a Virgin, o que provoca protestos de um grupo de brasileiros. “Eu sabia que ela não ia cantar essa música essa noite e resolvi pedir. Gostei de Don?t Cry for me Argentina, mas não penso apenas como argentino, eu acompanhei os muitos sentimentos de todas as partes do show com emoção”, afirmou Tomás, que é músico e diz que vai lançar seu próprio disco em três meses.

A partir da canção La Isla Bonita, Madonna canta acompanhada de ciganos romenos (dois violões, acordeão e violino), e promove uma “festa no acampamento”, com uma Carmen de cartão-postal dançando em volta da “fogueira”. O show chega ao fim como uma grande rave, com um set que termina com Give It 2 Me. Madonna conclama todos para a festa, e diz: “Argentina, é bom estar de volta”, e dança, pula corda, luta boxe e faz virar animação a arte pop-rupestre de Keith Haring.

Nas laterais do palco, uma letra M gigantesca, bordada com diamantes estilizados, parece mimetizar o símbolo do McDonald?s, mas o sanduíche aqui é só para quem pode, é caro e requer iniciação. É esse circo de força, poder, magia eletrônica e idolatria que desembarca no Maracanã nos próximos dias, encabeçado por uma mulher pequena e musculosa de 50 anos que luta como um leão contra a crueldade do tempo.

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